Relembrando os falecidos |
CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID
Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Esta semana, celebramos o Dia dos Finados, fazendo memória de nossos caros falecidos. Trata-se da manifestação pública de afeto pelos que nos antecederam, e de zelo pela sua destinação eterna. Mas, na realidade, a lembrança dos que partiram está sempre conosco, fazendo parte de nossa vida e de nossa história. E cada um de nós se encontra diante da perspectiva de se juntar a eles, um dia.
Isto nos coloca o problema da morte, que envolve nossos pensamentos, desejos e afetos. Sobre este tema vamos deter-nos, a partir de alguns enfoques possíveis, embora sem a profundidade desejada, respeitando os limites que este nosso espaço permite.
Em primeiro lugar, precisamos reconhecer que, na nossa época, há tentativas de explicação para a morte, completamente falhas e, até, nocivas, para uma vida autenticamente virtuosa. Basta pensar, por exemplo, nas filosofias orientais que inundam a mídia, e nas quais há quem busque a alternativa para um apregoado enfraquecimento da fé cristã. Outro fato corrente é a aceitação do suicídio como um ato heróico. Esta deturpação tem dado origem a ataques terroristas, “legitimados” pela promessa de uma recompensa póstuma, para heróis de um suposto dever.
Do ponto de vista filosófico-antropológico, reconhecemos o lado trágico da morte, no trauma da separação do nosso composto físico-espiritual. Quando a alma não está mais presente, a harmonia se perde e o corpo se decompõe. Mas somos destinatários do eterno. O nosso elemento espiritual sobrevive, pois, não sendo matéria, não se degrada nem morre. A alma humana preserva a identidade e a consciência da pessoa, continuando capaz de pensar e de amar.
Estas afirmações são fundamentais, pois rejeitam a possibilidade de que a alma possa reencarnar em outro corpo, dentro de um contexto diferente. A doutrina cristã ensina que o vínculo existente entre corpo e alma é único em cada ser humano e, embora ambos os elementos sejam provisoriamente separados pela morte, reencontrar-se-ão em plenitude no fim dos tempos, mediante a ressurreição final.
Na Sagrada Escritura, a vida após a morte não foi, de início, bem compreendida. Israel encontrava-se circundado por culturas que acreditavam na metempsicose, ou seja, na reencarnação – doutrina que a Bíblia nunca admitiu. Por isso, os autores sagrados, ainda que inspirados, não tiveram, de início, uma idéia bem clara sobre a felicidade póstuma. Isto foi se desenvolvendo lentamente. Nos livros mais antigos, existem pouquíssimos traços marcantes, que identifiquem a crença numa vida após a morte. Os Livros Sapienciais e os Salmos já apontam para uma repercussão de nossos atos terrenos, em vista da recompensa ou do castigo a que estaremos sujeitos, na eternidade da vida futura. Somente os livros mais tardios, como o dos Macabeus, apontam, claramente, para esta realidade (cf. 2Mc 7 ; 12,38ss).
“A morte entrou no mundo pelo pecado” (Rm 5,12). Pensemos, aqui, não tanto na morte física, mas na morte espiritual, com suas conseqüências trágicas: o sofrimento extremo, a angústia provocada pela incerteza quanto ao momento final, o medo de encontrar a Deus face a face. Com o advento de Cristo, deu-se a revelação completa e todas as dúvidas foram esclarecidas pela doutrina do Evangelho: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Cristo nos ensina a olhar a morte para além da angústia e do medo. Ele venceu o lado terrífico, o lado angustioso da morte, através da sua Ressurreição. Com a Ressurreição se abre a porta da esperança na eternidade feliz. Afinal, a expectativa mais deslumbrante não é encontrar Deus face a face? Essa experiência já é, de certo modo, antecipada no diálogo da oração, na amizade, enfim, numa abertura completa, numa entrega a Deus, que tomou a iniciativa de se dar a nós.
Mas, a morte nos coloca, também, diante de graves problemas morais, constantemente denunciados pela Igreja, e objeto de vários artigos nossos. Em primeiro lugar, o aborto provocado, voluntário, que ceifa a vida de tantos inocentes. Depois, a eutanásia, que entra no campo do suicídio, por parte daquele que se dispõe a morrer, e do assassinato, por parte daqueles que o assistem nisso.
Em qualquer circunstância, o assassinato é o pior pecado que existe, e é uma tragédia para a própria sociedade. Quando se chega ao extremo de desvalorizar a vida a esse ponto, o que se vai, ainda, respeitar? Por isso, precisamos continuar anunciando que a vida é o dom mais precioso de Deus, que entregou o próprio Filho na cruz por nós. Vejam quanto valemos aos olhos de Deus!
Termino com um pensamento para aqueles que vão homenagear seus falecidos, no dia 2 de novembro, levando-lhes flores, lembranças e... saudades. Saudade não é simplesmente derramar lágrimas diante de um túmulo. Para o cristão, a saudade está permeada de esperança, pois sofremos pela ausência momentânea, transitória, até nos reencontrarmos na Comunhão dos Santos, que Cristo nos prometeu. Então, fruiremos, em plenitude, do convívio com todos os que viveram antes de nós: a Virgem Maria, os Santos, nossos familiares e amigos, todos aqueles que tiveram parte em nossa vida, e nos enriqueceram com seu convívio.
Esforcemo-nos para fazer o bem a todos em vida, no tempo de caminhada que Deus nos concede. Se, porém, falhamos nisto, nada de remorsos. O Dia de Finados não é para cultivar remorsos, pelo que poderíamos ter feito, e não fizemos, seja por um familiar, ou por um amigo. Peçamos perdão a Deus, que nunca o nega ao coração arrependido, e sigamos adiante.
Não adianta colocar sobre o túmulo uma flor de reparação, banhada em lágrimas. As flores, no dia seguinte, já estão murchas. Devemos plantar, em nosso íntimo, a flor da simpatia e do amor, pois esta nunca murcha. A flor que eu coloco no túmulo de meus familiares jamais fenece, porque não me esqueço deles, nem um dia sequer. Portanto, é uma flor viva, que está ali a honrar a memória deles e a riqueza que eles representaram, e ainda representam, em minha vida.
A morte não tem poder sobre a força ilimitada da Ressurreição de Cristo, fonte da vida, que recebemos dEle pelo Batismo, e que terá seu desabrochar pleno no encontro definitivo com o Senhor, na eternidade feliz. Esta é a verdadeira concepção cristã da morte, que guarda em si a esperança mais comovente e mobilizadora de nossa vida.
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